Num quadro em que há casas sublotadas e outra sobrelotadas "não faz sentido que todas paguem IMT" para que se consiga "uma afetação mais eficiente do parque habitacional", defende Vera Gouveia Barros.
O aumento do preço das casas não implica uma sobrecarga das despesas das famílias com a habitação nem faz subir o risco do aumento de pobreza. É que, apesar de os preços das casas no mercado terem duplicado face a 2010, segundo os dados da Comissão Europeia, “uma habitação é um bem duradouro, o que significa que as casas em que vivemos agora não têm de ter sido compradas ou arrendadas agora”, salienta ao ECO Vera Gouveia Barros, autora do mais recente estudo da Sedes que analisa a “Situação da Habitação em Portugal”.
Em entrevista por escrito ao ECO, a economista especialista em Habitação e membro do Observatório de Políticas Económicas e Financeiras da Sedes, traça um retrato do parque habitacional do país e tece duras críticas ao pacote legislativo Mais Habitação classificando algumas medidas como “estúpidas” e diz ter um “tom de castigo” que “gera receio nos proprietários”.
Para Vera Gouveia Barros, o pacote desenhado pelo Governo tem “falta medidas ao nível da fiscalidade” e, como exemplo, aponta a necessidade de tornar o IMT “num imposto mais inteligente” para “promover uma afetação mais eficiente do parque habitacional”. Porque “se temos famílias a viver em alojamentos sublotados e outras em sobrelotação, não faz sentido que todas paguem IMT”.
Além da falta de medidas fiscais, a economista salienta ainda que o incentivo do programa de Apoio ao Arrendamento provoca um efeito “perverso” porque faz com que “os senhorios procurem arrendar a famílias de maiores rendimentos e reduzir a tributação em função de intervalos de duração dos contratos de arrendamento”.
Em termos gerais, como traça o retrato do parque habitacional em Portugal?
Antes de mais, a distribuição geográfica do nosso parque habitacional mostra grandes assimetrias, o que não surpreende, porque também a distribuição da população exibe grandes disparidades territoriais. Em segundo lugar, temos casas grandes. A maioria das nossas habitações tem quatro ou cinco divisões e a área média situa-se nos 112 metros quadrados. Mas as famílias estão a ficar mais pequenas e, por isso, a maioria das casas está sublotada. Em terceiro, a dinâmica de construção na última década foi menor. Consequentemente, o índice de envelhecimento dos edifícios subiu, o que provavelmente ajuda a explicar o aumento da percentagem de edifícios que, em Portugal, precisa de obras. Lisboa e Porto conheceram, contudo, uma tendência contrária, isto é, a proporção de edifícios a necessitar de reparação diminuiu, refletindo a reabilitação urbana que estas duas cidades conheceram nos últimos anos. Finalmente, mas não menos importante, temos casas que não estão preparadas nem para o frio nem para uma população que, fruto do seu envelhecimento, conhecerá dificuldades crescentes de mobilidade.
No estudo da Sedes refere que o aumento dos preços das casas não implica uma subida da sobrecarga das despesas com a habitação ou do risco de empobrecimento. Porquê? Como se explica?
Percebendo o funcionamento do mercado imobiliário, compreende-se um pouco melhor este resultado que será, para muitos, surpreendente. Uma habitação é um bem duradouro, o que significa que as casas em que vivemos agora não têm de ter sido compradas ou arrendadas agora. Na verdade, na grande, grande maioria dos casos não o são. Uma casa é, ainda, um bem profundamente heterogéneo, isto é, não há duas casas iguais. Por isso, a compra ou arrendamento de uma casa envolve negociação entre ambas as partes. Logo, os preços que observamos no mercado correspondem a preços que foram aceites pelo comprador ou inquilino. Não é como os preços que encontramos no supermercado, que são os mesmos para um milionário ou para quem ganha o salário mínimo.
Pense-se no caso do acesso ao ensino superior. Em cada ano, as médias de entrada dependem dos candidatos. O facto de as médias aumentarem num dado ano não significa que se tenha tornado mais difícil o acesso ao ensino superior. O que interessa é quantas vagas existiam, quantos candidatos ficaram excluídos da universidade, quantos entraram, mas não na primeira opção e qual a qualidade de ensino dos vários cursos. Na habitação, é bastante parecido. Notem-se, porém, dois aspetos. O primeiro é que o indicador da taxa de sobrecarga é obtido por inquérito, resulta de uma amostra. Seria muito melhor termos dados para toda a população, obtidos a partir de fontes como a Autoridade Tributária. A segunda é que quem está fora do mercado – não consegue comprar ou arrendar casa – não entra para aquela estatística.
Quais são os principais problemas da habitação em Portugal?
O funcionamento do mercado da habitação é muito diferente do da maioria dos outros bens e, por isso, olhar apenas para a evolução do preço não nos diz grande coisa. Tenho dito sistematicamente que o diagnóstico não está feito. Não foi feito pelos poderes públicos, mas também não o tenho. Há, contudo, problemas que consigo apontar ou intuir. Desde logo, o problema dos sem-abrigo que não é uma realidade nova. É a mais grave violação do direito à habitação, embora seja uma questão multidimensional.
Também chamo a atenção para outro facto que parece gerar pouca comoção: 68 % da população com incapacidade de mobilidade vive em casas que não estão preparadas para essa condição. Isto também é um problema de habitação. Num país em que 70 % das famílias é dona da casa onde mora, a subida de preço da habitação é um problema, sobretudo, para quem não tem uma casa, o que será o caso da maioria dos jovens. E parte do problema da habitação resulta de se querer mudar de casa, porque aquela onde se vive implica gastar muito tempo em deslocações já que os transportes públicos não funcionam, implica ter os filhos numa escola em que faltam professores ou implica viver numa urbanização criada sem ordenamento do território, onde não há serviços, nem espaços verdes, nem outros elementos que trazem qualidade ao habitat.
Um outro problema tem que ver com a coesão territorial ou com a falta dela. A grande assimetria da distribuição geográfica da população portuguesa também acaba por se relacionar com a questão da habitação. Finalmente, refiro mais dois pontos: a maior dificuldade no acesso ao crédito resultante das mudanças que o sistema bancário fez (e bem) na sequência da crise do subprime e as alterações demográficas, com o aumento das famílias monoparentais ou unipessoais e os desafios que daí decorrem em termos de rendimento.
A oferta e a rede dos transportes é um problema associado à habitação?
Sim, mas confesso que não conheço nenhum estudo que se debruce sobre essa relação. A questão do direito à habitação mistura-se muita vez com a do direito à cidade. Creio que a reivindicação deste último estará ligada a muitos fatores, mas a minha intuição diz-me que a ineficácia da rede de transportes tem aí um papel. Isto à escala metropolitana.
À escala nacional, o problema torna-se mais complexo e a falta de transportes soma-se à falta de emprego (o que com o teletrabalho poderia ser minorado se os tais transportes frequentes, rápidos, diretos e fiáveis existissem), à falta de serviços médicos, à falta de escolas, etc. O problema da habitação é também o problema das enormes assimetrias regionais, que se relaciona invariavelmente com o dos transportes.
O aumento da oferta iria, por si só, fazer descer os preços das casas?
Thomas Carlyle dizia que para se ter um economista basta ensinar um papagaio a dizer oferta e procura. No mercado da habitação isto é tudo um bocado mais complicado, mas vamos manter a versão simplista do Thomas Carlyle: tem de lhe ensinar também procura, porque a oferta, por si só, não determina o preço. Claro que, se aumentar a oferta e a procura não crescer ou crescer menos que proporcionalmente, o que se espera é uma descida do preço. Com a vantagem de a quantidade de habitação comprada e arrendada aumentar. Volto à analogia com o acesso superior: se tiver mais vagas nas universidades, é provável que as médias desçam, mas não é garantido.
O importante não é a média de entrada na faculdade, mas sim o ter acesso a formação superior que contribua para a realização pessoal e profissional. Também na habitação tomarmos o preço como um objetivo per se distrai-nos do que interessa, que é garantir a todos o direito à habitação. E, se calhar, temos mesmo de começar por encontrar um consenso na sociedade relativamente a que é isto do direito à habitação.
" Tomarmos o preço como um objetivo per se distrai-nos do que interessa, que é garantir a todos o direito à habitação.”
Quais são os principais problemas das medidas do Mais Habitação?
Fui (e sou) bastante crítica deste pacote legislativo. A primeira coisa que aponto é a falta de um diagnóstico. Uma política pública serve para resolver problemas. É preciso começar por conhecê-los e falta isso. Mas, se a política pública serve para alterar a realidade, também não pode ser completamente alheia a ela. Na habitação, julgo que é muito o resultado de não se perceber como funciona o mercado, porque é um mercado que tem um funcionamento muito próprio. O engraçado é que o Governo diz repetidamente que não começou a casa pelo telhado e, a esse propósito, refere a Lei de Bases da Habitação, mas depois encontram-se várias incongruências entre as medidas do Mais Habitação e a tal Lei de Bases. Perguntou-me se o aumento da oferta iria, por si só, fazer descer os preços das casas. Não faz, mas contrair a oferta não é boa ideia, certamente. Quando se fala em aumentar a oferta, muita gente pensa imediatamente em nova construção e rejeita essa ideia. Só que, sendo uma casa um bem duradouro, o aumento da oferta passa muito pela mobilização do parque habitacional já existente.
A Lei de Bases prevê que isso seja feito primordialmente com recurso ao património público, combinado com incentivo à oferta privada. Encaro incentivar a oferta privada como premiar quem coloca a sua casa no mercado. No entanto, este pacote legislativo adota antes a via da punição de quem não o faz. Pode parecer a mesma coisa, mas não é em termos ideológicos e não é em termos de resultados. O tom de castigo gera receio nos proprietários, que vão fazer exatamente o contrário do que se pretende: retirar as casas do mercado. Quando se está a falar de um bem que constitui o maior ativo das famílias, a habitação, a confiança é um elemento fundamental e ela foi quebrada.
"O tom de castigo gera receio nos proprietários, que vão fazer exatamente o contrário do que se pretende: retirar as casas do mercado”
Que medidas faltam ao Mais Habitação?
Faltam medidas ao nível da fiscalidade, que, por exemplo, tornem o IMT, em tempos chamado o imposto mais estúpido, num imposto mais inteligente, que serve como instrumento para promover uma afetação mais eficiente do parque habitacional. Se temos famílias a viver em alojamentos sublotados e outras em sobrelotação, não faz sentido que todas paguem IMT quando, no fundo, só estão a “trocar” de casa entre elas e a corrigir estas ineficiências. Também o incentivo perverso do Programa de Apoio ao Arrendamento, faz com os senhorios procurem arrendar a famílias de maiores rendimentos e reduzir a tributação em função de intervalos de duração dos contratos de arrendamento é um bocado estúpido. O Mais Habitação podia ter corrigido isso.
Faltam medidas destinadas à reabilitação urbana nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, onde mora a grande maioria da população portuguesa, que procurem mitigar os efeitos de uma expansão urbana sem ordenamento. Faltam medidas que subsidiem a transformação que as casas dos segmentos mais vulneráveis da população, como os idosos e quem tem problemas de mobilidade, necessitam.
Fora do âmbito do Mais Habitação, mas importante, faltam as medidas que se relacionam com a justiça. Fala-se muito da proteção dos senhorios face a inquilinos que não pagam, esquece-se a proteção face a inquilinos que pagam mas destroem e também a proteção de inquilinos face a senhorios abusadores e incumpridores ou as casas vazias por conta de disputa de heranças. Sobretudo, faltam ao Mais Habitação medidas de oferta pública de habitação, sobretudo através do património que o Estado já tem.
Mas há alguma medida positiva no Mais Habitação? Qual?
Sim, claro. Era difícil que fosse tudo mau. Saúdo o fim dos vistos gold, confesso que por questão de princípio, não propriamente por esperados impactos no mercado imobiliário. A simplificação dos licenciamentos parece-me bem, na medida em que vise burocracia e procedimentos inúteis que atrasam, complicam e encarecem sem qualquer contrapartida em termos de preservação de património, nomeadamente o arquitetónico. As medidas relativas às cooperativas carecem de
aperfeiçoamento, mas vejo com bons olhos que se dê novamente atenção a esta forma de ter habitação.
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