
Os bancos traíram a Teoria dos Jogos e nós pagamos a fatura
A lentidão da Justiça tornou-se cúmplice da racionalidade egoísta de um cartel que durante anos combinou preços e que agora escapa impune, deixando milhares de portugueses com as calças na mão.
A justiça portuguesa tem um novo capítulo para a sua já extensa coleção de paradoxos: um cartel bancário que manipulou o mercado durante anos, confissões internas com epicentro em Londres, coimas milionárias anunciadas com pompa e circunstância… e, no fim, um silêncio ensurdecedor. Não porque os arguidos tenham sido absolvidos, mas porque o tempo, esse juiz implacável, decidiu que já chega. Prescreveu. Morreu de velhice. E, com ela, morreu também a ilusão de que, em Portugal, os grandes casos de colarinho branco terminam com um ponto final e não com reticências.
Este caso, que culminou na segunda-feira com a prescrição das acusações e coimas a todos os prevaricadores após 13 anos de processos, é um retrato quase didático de como a racionalidade egoísta — a lentidão institucional — podem transformar um esquema de conluio numa comédia de erros. Sob a lente da Teoria dos Jogos com o seu célebre “Dilema do Prisioneiro”, este vergonhoso episódio é um gigantesco bug do sistema que tem tudo para se tornar num blockbuster de Hollywood.
No dilema do prisioneiro clássico popularizado pelo matemático Albert William Tucker, dois suspeitos são interrogados separadamente. Se ambos cooperarem (ficarem em silêncio), recebem penas leves. Se um trair o outro, sai livre enquanto o traído apodrece na prisão. E se ambos denunciarem o crime, ambos são punidos, mas menos severamente do que o ingénuo que confiou no parceiro. A tragédia está na inevitabilidade da traição: mesmo sabendo que a cooperação traria o melhor resultado coletivo, cada jogador racional escolhe desertar para minimizar o seu risco individual.
No cartel da banca, as 11 instituições financeiras envolvidas — incluindo os cinco maiores bancos da altura, como a Caixa, o Santander Totta, o BCP, o BPI e o BES — ocuparam o papel dos prisioneiros. Entre 2002 e 2013, estas instituições trocaram informações sigilosas sobre spreads, comissões e condições de crédito, harmonizando práticas para limitar a concorrência. Era um pacto tácito: se todos mantivessem preços altos, o lucro do setor seria maximizado, tal como no equilíbrio cooperativo do dilema do prisioneiro. Mas a ganância, como sempre, corrói os acordos.
O acórdão do Tribunal é claro: “O procedimento não se mostra prescrito por inércia, mas por força do regime legal”. Tradução: a lei permite que casos complexos morram na praia. Significa que os bancos não foram absolvidos, mas saíram impunes.
A ironia crua do caso está na origem da denúncia: o Barclays, o histórico banco britânico que em 2012 admitiu manipular a taxa LIBOR, fez uma auditoria interna para limpar a sua imagem global. Na operação de due diligence descobriu que a sua filial portuguesa era participante num cartel de preços. Seguiu-se a delação premiada: o Barclays denunciou o esquema à Autoridade da Concorrência (AdC), escapando de multas com uma mera admoestação.
Aqui, o dilema do prisioneiro ganha cores vivas. O Barclays, pressionado por escândalos internacionais, quebrou o silêncio para evitar sanções mais duras — exatamente como um prisioneiro que trai o cúmplice para obter imunidade. Enquanto isso, os demais bancos, confiantes no pacto, continuaram a cooperar. O resultado? Multas de 225 milhões de euros para os traídos… até o Tribunal da Relação de Lisboa decidir, na segunda-feira, que o caso associado ao cartel da banca já tinha prescrevido. O desfecho judicial foi assim uma reviravolta kafkiana.
Na teoria dos jogos, a estabilidade de um cartel depende de dois fatores: a ameaça credível de punição para quem desertar, e a repetição do jogo, que permite retaliar traições futuras. Em Portugal, nenhum dos dois funcionou. A AdC demorou uma década para concluir o processo e a Justiça permitiu que os prazos prescrevessem.
Na prática, o Estado agiu como um guarda prisional distraído que deixa os prisioneiros negociarem em celas abertas. Sem medo de punição, os bancos mantiveram o cartel até que um deles — o Barclays – calculou que a traição traria mais benefícios (ou apenas porque foi pressionado por Londres). Pior: a prescrição anulou até as multas aplicadas, transformando o caso num equilíbrio de Nash perverso.
Porém, o acórdão do Tribunal é claro: “O procedimento não se mostra prescrito por inércia, mas por força do regime legal”. Tradução: a lei permite que casos complexos morram na praia. Significa que os bancos não foram absolvidos — o tribunal reconheceu a “conduta livre, deliberada e consciente” dos atos praticados –, mas saíram impunes. É como se, no dilema original, ambos os prisioneiros confessassem, mas a Justiça os libertasse por falha processual.
A lição é amarga: em Portugal, a Justiça lenta é cúmplice involuntária da racionalidade egoísta. O cartel da banca não foi apenas uma falha de mercado. Foi um fracasso institucional em criar incentivos para a cooperação social.
Em jogos repetidos, a cooperação pode emergir através de estratégias como “olho por olho”, onde os jogadores punem traições nas jogadas seguintes. No cartel da banca, porém, o jogo foi finito e mal desenhado. Os bancos sabiam que, mais cedo ou mais tarde, o esquema ruiria — seja por delação, seja por investigação. A racionalidade impedia a cooperação duradoura.
A AdC tentou, em 2022, atualizar a legislação para evitar prescrições, mas era tarde. O dano já estava feito: durante uma década, os clientes pagaram spreads inflacionados, enquanto o sistema permitiu que o tempo lavasse a mancha do cartel. A lição é amarga: em Portugal, a Justiça lenta é cúmplice involuntária da racionalidade egoísta. O cartel da banca não foi apenas uma falha de mercado. Foi um fracasso institucional em criar incentivos para a cooperação social.
Na Teoria dos Jogos, a solução para o dilema do prisioneiro está em mecanismos externos que alterem a matriz de ganhos — multas pesadas, transparência forçada, ou recompensas para delatores. Em Portugal, o Barclays foi o único a ganhar com a traição, enquanto os outros bancos perderam… temporariamente.
No fim, todos escaparam ilesos, e os consumidores ficaram a segurar a conta. Este caso confirma que, sem Justiça célere e punições exemplares, o dilema do prisioneiro transforma-se num jogo de soma nula — onde o único vencedor é a impunidade. Infelizmente.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Os bancos traíram a Teoria dos Jogos e nós pagamos a fatura
{{ noCommentsLabel }}