Incentivos para os fundos apoiarem startups fundadas por mulheres, maior diversidade nos comités de decisão, mentoria são algumas recomendações das empreendedoras. Hoje é Dia da Mulher.
Contra números não há opiniões. Em Portugal, apenas 14% das mais de quatro mil startups no país são fundadas ou lideradas por mulheres. No ano passado, dos 48,8 mil milhões de euros de capital de risco levantados pelo ecossistema de empreendedorismo europeu, apenas 12% foi canalizado para empresas fundadas por mulheres.
Se o empreendedorismo (ainda) é um mundo de homens, o que querem as mulheres para mudar este status quo de desigualdade de género? Incentivos para os fundos de capital de risco apoiarem startups fundadas por mulheres, maior diversidade nos comités de decisão dos fundos, mentoria e incubadoras voltadas para startups lideradas por mulheres são algumas das propostas das mulheres ouvidas pelo ECO. Este sábado assinala-se o Dia da Mulher.
“O número reduzido de mulheres fundadoras de startups não reflete uma falta de talento ou ambição, mas sim barreiras estruturais que dificultam a sua presença no ecossistema empreendedor”, atira Daniela Simões, CEO e cofundadora da miio, startup de mobilidade elétrica com operação em sete mercados, entre os quais, na Alemanha, Itália, Bélgica e Holanda, com cerca de 290 mil postos e mais de 350 mil utilizadores registados na sua aplicação de carregamento de veículos elétricos.
O número reduzido de mulheres fundadoras de startups não reflete uma falta de talento ou ambição, mas sim barreiras estruturais que dificultam a sua presença no ecossistema empreendedor.
Os dados do mais recente estudo da Mastercard parece indicar que, efetivamente, não falta ambição às mulheres em criar o seu próprio negócio, em particular entre as gerações mais novas: 57% identificam-se como empreendedoras — acima da média europeia de 18% —, com 39% a afirmar ter planos para avançar com a abertura de um negócio próprio, valor que sobe para 63% no caso das mulheres da geração Z.
E onde querem abrir negócios? Educação (15%), comércio online (14%) e na hotelaria e lazer (12%). Apenas 4% apontam o setor de tecnologia e informática (vs 15% dos homens), segundo o estudo realizado em 41 países, entre os quais Portugal, numa amostra de 42.500 pessoas (21 mil na Europa, 1.000 em Portugal), das quais 4.300 empresários/fundadores (1.830 na Europa, 100 em Portugal).
Apesar dessa ânsia empreendedora, mais de um terço das mulheres (35%) acredita não ter possibilidade de abrir a sua empresa, com o capital a ser apontado por mais de metade (57%) como o principal motivo.
12% de investimento VC na Europa para mulheres
Obter financiamento não é uma tarefa fácil, mas para as mulheres convencer os fundos de capital de risco — grandes financiadores do ecossistema de empreendedorismo — parece mais difícil.
Os dados do Female Innovation Index 2025 apontam que apenas 12% do total angariado pelas startups europeias foi canalizado para mulheres empreendedoras no ano passado. A mesma fatia do ano anterior e apenas dois pontos percentuais acima do levantado em 2020. Em Portugal, não há dados que permitam aferir com precisão quanto foi levantado por startups fundadas por mulheres, mas aplicando-se a mesma métrica, significa que dos 448 milhões canalizados para as startups nacionais no ano passado, segundo dados do Dealroom, apenas 53,8 milhões chegam às mulheres empreendedoras.
“Em Portugal, as mulheres precisam de seguir em frente. A quantidade de mulheres fundadoras de startups está bem abaixo das médias europeia ou norte-americana. No entanto, concordo que a captação de financiamento é muito mais difícil, senão impossível, para mulheres, em qualquer parte do mundo”, diz Christine Pausewang. “Para resolver isto, os fundos poderiam implementar políticas no sentido de investir uma certa proporção do em startups fundadas por mulheres”, defende a cofundadora da Biocol Labs.
“A mudança não passa por criar programas especiais para mulheres empreendedoras em áreas dominadas por homens, mas sim por não utilizar o género como algo que define oportunidades, acesso à informação ou investimentos, etc.”, atira Mariana Tomé Ribeiro, fundadora da Quycky.
Maternidade, um obstáculo para os fundos?
A CEO da aplicação de encontros com base na gamificação faz o retrato do atual momento. “Os números mais recentes do Startup Genome de 2024, que analisam dados do ecossistema empreendedor europeu, dão conta de que apenas 15% dos fundadores de startups são mulheres [em Portugal um estudo da Informa D&B para a Startup Portugal coloca esse valor nos 14%]. E que apenas uma em cada três startups têm mulheres entre os seus cofundadores. Os números refletem, mais do que uma discrepância de género, uma questão cultural muito característica do mundo ocidental e da própria natureza da mulher”, diz.
Numa conversa recente com um investidor, ele partilhou que investe em mulheres empreendedoras, mas admitiu que um dos riscos frequentemente apontados, sobretudo em startups fundadas por uma única pessoa, é o potencial impacto da maternidade. Esta continua a ser uma questão sensível e uma barreira real que temos de aprender a enfrentar e desconstruir.
Depois há o tema da maternidade a baralhar os números. “Inevitavelmente, o ‘tempo’ que as mulheres podem investir numa carreira ou numa empresa está ‘contado’, e está sempre ligado e dependente de funções como a de ser mãe ou dona de casa. No entanto, acredito que o empreendedorismo é uma característica de personalidade e que, por isso, parte de um estado de insatisfação que leva a uma vontade de querermos fazer mais e melhor para facilitar o dia a dia”, argumenta.
O tema da maternidade — e o seu impacto na vida da mulher empreendedora — pode ser um dos fatores ponderados pelos fundos na hora de investir. É isso que nos dá conta Raquel Magalhães.
“Numa conversa recente com um investidor, ele partilhou que investe em mulheres empreendedoras, mas admitiu que um dos riscos frequentemente apontados, sobretudo em startups fundadas por uma única pessoa, é o potencial impacto da maternidade”, conta a cofundadora da Connected.
“Esta continua a ser uma questão sensível e uma barreira real que temos de aprender a enfrentar e desconstruir. Não existe uma fórmula mágica, mas é fundamental dar o apoio certo na altura certa, e elas próprias conseguirão atingir este equilíbrio”, aponta a também chief operating officer (COO) da startup que, em fevereiro do ano passado, levantou dois milhões de euros para fornecer serviços de conectividade em zonas remotas a partir do espaço.
Financiamento mais paritário, precisa-se
Mas ser mãe não impede o empreendedorismo feminino, como lembra (e bem) Márcia Pereira, fundadora da Bandora, startup que ajuda a transformação digital de edifícios tornando-os 100% autónomos. “Fundei a Bandora grávida da minha segunda filha, por isso posso falar sobre a minha própria experiência, pois estou ciente que contrario a tendência de perfil de fundador de startups”, começa por dizer.
“Sendo a única fundadora, foi extremamente difícil captar investimento, algo que só foi possível através de programas estruturais, onde (felizmente!) a avaliação do mérito não passa pelo género dos sócios fundadores das empresas”, considera a CEO da startup que, em julho, fechou uma ronda de 1,5 milhões para dar energia ao projeto de expansão.
Os fundos públicos destinados a alavancar a competitividade do tecido empresarial inovador e de maior risco, como as startups, continuam a perpetuar a desigualdade de género. Para garantir um verdadeiro equilíbrio e fomentar a inclusão, é essencial repensar os critérios de alocação de investimento e adotar políticas mais inclusivas, que incentivem a participação ativa das mulheres na criação e liderança de empresas.
“O acesso ao investimento continua a ser pouco equilibrado em termos de género, pelo que algumas iniciativas poderiam contribuir para nivelar o campo de jogo”, aponta Márcia Pereira. Por isso, a CEO da Bandora sugere algumas medidas que podem ajudar a contrariar essa disparidade.
No “acesso a fundos estruturais, por que não atribuir uma majoração na comparticipação do financiamento a fundo perdido, caso os sócios fundadores sejam equipas diversas ou 100% do género feminino?”, questiona. “Não me refiro a atribuir uma maior pontuação ao projeto, mas sim a uma majoração na comparticipação após a aprovação da candidatura”, precisa.
“Os fundos públicos destinados a alavancar a competitividade do tecido empresarial inovador e de maior risco, como as startups, continuam a perpetuar a desigualdade de género. Para garantir um verdadeiro equilíbrio e fomentar a inclusão, é essencial repensar os critérios de alocação de investimento e adotar políticas mais inclusivas, que incentivem a participação ativa das mulheres na criação e liderança de empresas”, defende a empreendedora.
Não é a única a sugerir um campo de jogo mais equilibrado no que toca ao acesso a financiamento. “Para incentivar o empreendedorismo feminino, é essencial facilitar o acesso a financiamento por meio de fundos e linhas de crédito específicas”, considera Diana Oliveira, cofundadora e diretora de I&D da Pfx Biotech.
“O número de mulheres fundadoras ou mesmo em cargos de lideranças é ainda reduzido. Temos o exemplo dos resultados do EIC Accelerator que, desde março de 2021, das 702 startups/empresas elegidas para financiamento, apenas 104 tinham uma mulher como CEO (e apenas duas eram empresas portuguesas), representando apenas 15% dos fundos totais atribuídos até à data”, constata.
“O que contraria diversos estudos que mostram que empresas com liderança feminina tendem a ter desempenho financeiro superior”, alerta.
É preciso começar por corrigir as assimetrias no acesso a financiamento, criar fundos específicos para startups lideradas por mulheres e aumentar a representatividade feminina em órgãos de decisão de fundos de investimento e aceleradoras.
A Pfx Biotech é uma das 30% de startups fundadas e lideradas por mulheres incubadas na Uptec. Quase um terço. Por isso, Maria Oliveira, diretora da Uptec, defende como “essencial” a adoção de políticas que eliminem “barreiras sistémicas” e promovam a igualdade de oportunidades. Como?
“É preciso começar por corrigir as assimetrias no acesso a financiamento, criar fundos específicos para startups lideradas por mulheres e aumentar a representatividade feminina em órgãos de decisão de fundos de investimento e aceleradoras”, elenca.
Maior diversidade nos fundos
Nos fundos de investimento há trabalho a fazer. “Uma das medidas mais eficazes [para aumentar o investimento em startups de mulheres] seria formar os investidores para reconhecerem e corrigirem os seus próprios enviesamentos inconscientes”, considera Inês Santos Silva, cofundadora da Portuguese Women in Tech.
“Estudos mostram que investidores, muitas vezes sem se aperceberem, avaliam negócios liderados por mulheres de forma diferente dos negócios liderados por homens. Formação e outras iniciativas que promovam decisões de investimento mais objetivas poderiam equilibrar este cenário”, argumenta.
Há que “favorecer também a diversificação do comité de investidores, uma vez que este é, maioritariamente, dominado por homens”, aponta Daniela Simões, da miio.
Uma das medidas mais eficazes [para aumentar o investimento em startups de mulheres] seria formar os investidores para reconhecerem e corrigirem os seus próprios enviesamentos inconscientes. Estudos mostram que investidores, muitas vezes sem se aperceberem, avaliam negócios liderados por mulheres de forma diferente dos negócios liderados por homens. Formação e outras iniciativas que promovam decisões de investimento mais objetivas poderiam equilibrar este cenário.
Os números europeus corroboram esta visão. No ano passado, as mulheres eram apenas 15% dos decisores em firmas de venture capital com, pelo menos, 50 milhões de euros sob gestão, menos do que os 15,2% de um ano antes. Sinal mais positivo, é o crescimento de 11,4% para 12,3% de mulheres em firmas com ativos abaixo dos 50 milhões sob gestão.
As maiores firmas empregam mais mulheres, mas apenas 8,3% têm poder de decisão sobre o investimento, enquanto nas mais pequenas 13,8% têm essa prerrogativa. Fundos focados na área de saúde (14,6%), biotecnologia (14,5%) são aqueles com maior número de mulheres nos comités executivos, com os setores de IT (8,3%) e hardware (7,8%) do lado oposto, revelam os dados do “European All In Female Founders in the VC Ecosystem”, da Pitchfork.
Um tema de liderança feminina que não é exclusivo do empreendedorismo. Apesar de as mulheres serem 42% dos empregados nas empresas e 59% da população ativa com ensino superior, em Portugal apenas 30% dos cargos de gestão nas empresas são desempenhados por mulheres e somente 27% ocupa um cargo de liderança.
É nas grandes empresas que a disparidade de género é mais acentuada: embora representem cerca de metade da força de trabalho, apenas 20% ocupa cargos de gestão e 11% de liderança, aponta o estudo “Presença feminina nas empresas em Portugal”, da Informa D&B.
Mais preocupante é o fato de a nível empresarial a evolução ser “quase nula há vários anos”. Desde 2017, a percentagem de mulheres em cargos de gestão e liderança aumentou apenas um ponto percentual, de 26% para 27%. Apesar de nas cotadas e empresas do setor público empresarial, a imposição de quotas na administração ter gerado uma evolução positiva no combate à desigualdade.
“Medidas de políticas públicas, como incentivos fiscais e incubadoras voltadas para startups lideradas por mulheres, pode também contribuir para facilitar a incorporação de mulheres em posições de chefia”, defende Diana Oliveira, da Pfx Biotech.
Mentoria, educação: o gamechanger social
Mas, para “impulsionar uma mudança real”, para Benedita Miranda “é essencial ir além do apoio financeiro e apostar fortemente na educação, no networking e na mentoria”, defende a general manager da Foundever.
“Programas de mentoria que permitam interligar empreendedoras a líderes empresariais de diferentes setores são fundamentais para criar um ecossistema de suporte e partilha de conhecimento. Essa troca de experiências não só encoraja a inovação e o crescimento, mas também fortalece a confiança das empreendedoras para assumirem riscos e ampliarem a abrangência dos seus negócios”, defende a gestora, dando como exemplo o programa Ponto Zero (Portugal) ou o Freelance Mama (Egito), “através do qual já ajudámos mais de 60 mulheres a reintegrarem-se no mercado profissional”.
Programas [de mentoria] têm um impacto transformador na sociedade ao oferecer modelos reais de sucesso para futuras líderes. Algures em Portugal, há uma estudante de 20 anos, uma freelancer de 25 ou uma recém-mãe de 30 que talvez ainda não veja o empreendedorismo como uma opção viável. Mas, ao terem acesso a redes de mentoria e apoio, podem vislumbrar um caminho concreto para construir o seu próprio negócio e redefinir o cenário empresarial do país.
“Esses programas têm um impacto transformador na sociedade ao oferecer modelos reais de sucesso para futuras líderes. Algures em Portugal, há uma estudante de 20 anos, uma freelancer de 25 ou uma recém-mãe de 30 que talvez ainda não veja o empreendedorismo como uma opção viável. Mas, ao terem acesso a redes de mentoria e apoio, podem vislumbrar um caminho concreto para construir o seu próprio negócio e redefinir o cenário empresarial do país”, acredita.
Mais iniciativas de networking, dar visibilidade a casos de sucesso são outras recomendações. “Aumentar o número de mulheres a criar empresas é um problema complexo, pois o que nos impede de o fazer está profundamente enraizado na cultura e nas expectativas sociais. Não há um número mágico de programas de mentoria, aceleração ou incubação que vá, por si só, alterar significativamente este cenário. A mudança requer um esforço mais amplo, que passa pela educação, pela representação feminina em posições de liderança e pela desconstrução de estereótipos sobre o que significa ser empreendedor”, sintetiza Inês Santos Silva, da Portuguese Women in Tech.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Elas são 14% dos fundadores de startups. Mas querem ser mais e dizem como
{{ noCommentsLabel }}