
As lições da Suécia e o momento político atual
Uma cultura política de serviço cívico implica que as lideranças devem dar o exemplo e saber quando sair, cedendo o lugar a quem tenha mais condições para exercer o cargo.
A qualidade de uma democracia é influenciada pela forma como os partidos políticos se organizam e promovem a participação dos cidadãos. A Suécia, tal como outros países nórdicos, oferece um modelo de democracia participativa com práticas mais saudáveis do que as observadas em Portugal. Neste artigo assinalo alguns aspetos que diferenciam a organização interna dos partidos políticos em ambos os países, procurando realçar boas práticas na Suécia que incentivam a participação dos cidadãos e a perceção da política como um serviço cívico, em vez de uma carreira profissional, o que suporta as minhas propostas.
A descentralização dos partidos e a participação cívica; a meritocracia e a transparência no Estado
A Suécia é reconhecida pela sua democracia robusta, caracterizada por uma elevada participação dos cidadãos nos processos políticos. Os partidos políticos suecos adotam uma estrutura bastante descentralizada, permitindo uma participação bastante alargada nas decisões internas. As convenções partidárias locais e regionais desempenham um papel crucial na seleção de candidatos e na formulação de políticas, garantindo que as diversas vozes da sociedade sejam representadas.
Embora não existam limites legais para mandatos de cargos políticos dentro dos partidos na Suécia, há uma cultura política que promove a rotatividade de lideranças. Esta prática evita a concentração de poder e incentiva a renovação política, reforçando a perceção da política como um serviço cívico temporário. Além disso, a educação cívica é valorizada desde cedo, incentivando os cidadãos a envolverem-se ativamente na política e a encararem a participação política como uma responsabilidade coletiva.
Na Suécia, a cultura política valoriza ainda a transparência, a meritocracia e a separação clara entre o partido e o Estado. O sistema sueco tem várias salvaguardas para mitigar o risco de carreirismo político e práticas de favorecimento:
Recrutamento baseado no mérito: as nomeações para cargos públicos são predominantemente baseadas em qualificações e competências, assegurando processos de seleção competitivos e transparentes.
Órgãos de supervisão independentes: instituições independentes monitorizam as nomeações e a Administração Pública, garantindo que as decisões sejam tomadas com base no interesse público e não em interesses partidários.
Cultura de serviço público: a sociedade sueca enfatiza a importância do serviço público como uma responsabilidade cívica, o que desencoraja a utilização de posições públicas para ganhos pessoais ou partidários.
Transparência e acesso à informação: a Suécia possui leis rigorosas de transparência que permitem aos cidadãos acesso a informação sobre os processos de nomeação e gestão pública, promovendo a responsabilização e a confiança nas instituições. Maior transparência reduz o risco de favorecimentos partidários e incentiva práticas políticas mais justas e equitativas.
A cultura participativa e as salvaguardas do sistema político sueco impedem o carreirismo político e a formação de redes clientelares ligadas às estruturas partidárias locais e regionais, que servem de base à ascensão dos líderes políticos suecos de forma transparente, bem como às organizações juvenis dos partidos. Em contraste, em Portugal, essas dinâmicas – o carreirismo político e as redes clientelares – parecem estar enraizadas.
A centralização partidária, a rede clientelar e o fenómeno dos ‘jobs for the boys’, que afasta os cidadãos
Em Portugal, os partidos políticos tendem a ser mais centralizados, com as lideranças nacionais a exercerem uma forte influência nas decisões, incluindo a seleção de candidatos e a formulação de políticas. Embora existam estruturas locais e regionais (distritais, concelhias e federações), estas têm um papel sobretudo consultivo, com menor poder decisório, ainda que influenciem a formação e sustentação das lideranças partidárias com base em lealdades políticas (ou até pessoais). Se dúvidas houvesse, o elevado centralismo do Estado em Portugal – que tem um dos pesos mais baixos a nível europeu da despesa local e regional, tanto no total da despesa pública como no PIB – é prova de que as estruturas locais e regionais dos partidos não têm sido capazes de promover a descentralização do nosso país.
A rotatividade das lideranças partidárias (nos seus diferentes níveis) tende a acontecer quando há maus resultados eleitorais e não como prática sistemática saudável (caso da Suécia e outros países nórdicos), o que ajuda à perpetuação de lideranças e promove a profissionalização da política, a par com uma ‘rede clientelar’ associada às juventudes partidárias e aos referidos apoios locais e regionais, que ajudam à formação e sustentação dessas lideranças, sobretudo nos partidos maiores, com maior alcance territorial. Esta dinâmica desencoraja a participação de novos atores e limita a renovação política, contribuindo para a perceção de distanciamento entre os representantes e os representados, em prejuízo da Democracia.
No que se refere às juventudes partidárias, elas desempenham um papel significativo na mobilização e formação política dos jovens, o que é positivo, promovendo a criação de futuros quadros políticos. O problema é que a cultura instalada nos partidos políticos incentiva a criação de redes de lealdade e o ‘carreirismo político’, promovendo as ‘jotas’ como meio de ascensão social, o que não incentiva a que os jovens procurem provar o seu mérito e contributo social fora dos partidos políticos, desligando-os dos problemas do ‘país real’ e tornando-os reféns de ‘partidos fechados sobre si próprios’ e pouco abertos a novas abordagens. A expansão da rede clientelar de quadros políticos, a quem terá sido ‘prometida’ uma ‘carreira’, conduz a práticas instaladas de favorecimento político e social, conduzindo ao fenómeno conhecido como “jobs for the boys” que, sublinho, é permitido pela legislação vigente. Como o nome indica, a prática refere-se à distribuição de cargos públicos a membros ou simpatizantes do partido quando ascende ao poder, frequentemente como recompensa por lealdade partidária e não necessariamente por mérito ou competência.
Ironicamente, a exponenciação do número de quadros políticos promovida pelo ‘carreirismo político’, ao promover situações de favorecimento desligadas do mérito, agrava a suspeição e o risco de ‘julgamentos em praça pública’, tornando cada vez mais difícil os governos conseguirem recrutar quadros de topo para as mais elevadas funções do Estado, incluindo cargos de ministro e secretário de Estado. A exposição mediática crescente e os baixos salários de cargos políticos afastam muitos dos mais capazes da ‘sociedade civil’, restando muitas vezes apenas a base de recrutamento partidária, que é alargada, mas não foi construída com base no mérito e ligação ao resto da sociedade, como referido, gerando um afastamento cada vez maior entre os eleitores e uma classe política cada vez menos representativa da sua realidade e incapaz de resolver (ou até reconhecer) os seus problemas.
Ou seja, o que temos assistido nos últimos anos é o desmoronar de um sistema político-partidário pouco transparente e desligado do mérito e da sociedade, que está a sofrer as consequências disso mesmo, tendo ‘aberto a porta’ e o flanco ao populismo importado do exterior pela incapacidade de recrutar os melhores e de resolver os problemas das pessoas.
Implicações para a necessária reforma do Estado e do sistema político
Quando se fala de reforma do sistema político, tem-se abordado sobretudo a reforma do sistema eleitoral, nomeadamente a introdução de círculos uninominais, com a qual tendo a concordar, por visar uma maior ligação entre representantes e representados.
Contudo, face a exposto acima, parece-me bem mais importante adotar reformas que promovam uma maior democratização interna dos partidos e uma cultura política mais transparente e participativa, seguindo bons exemplos como o da Suécia.
O reforço da democratização interna, abertura à sociedade civil e promoção da política como serviço público e não como carreira deverá partir dos próprios partidos – quem o fizer primeiro, será recompensado a prazo, se tal for percecionado pelos eleitores e contribuir para a resolução dos problemas económicos e sociais. Contudo, há vários aspetos da reforma do Estado e outras medidas que governo e Parlamento podem promover e são cruciais para debelar o carreirismo político, reforçar a transparência e reduzir o afastamento entre os cidadãos e os políticos, além de aumentarem a eficiência da despesa:
- Reforçar a meritocracia nos processos de recrutamento: seria benéfico reforçar a autonomia da CReSAP (Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública) e assegurar que todas as nomeações sejam exclusivamente baseadas no mérito, eliminando quaisquer resquícios de partidarização no Estado e promovendo uma maior estabilidade das equipas, desligada dos ciclos políticos.
- Aumentar a capacidade dos órgãos de supervisão: o MENAC (Mecanismo Nacional Anticorrupção), o Tribunal de Contas e a Provedoria de Justiça são essenciais na fiscalização da legalidade e eficiência da Administração Pública, devendo ter os meios financeiros e humanos adequados para essa missão crucial, o que reforçaria a sua independência.
- Promover uma cultura robusta de serviço público, transparência e acesso à informação: a promoção de códigos de conduta, formação em ética dos funcionários públicos, transparência nos processos (e desburocratização, que deve ser promovida pela digitalização dos serviços públicos) e acesso mais facilitado à informação são apenas alguns aspetos de um pacote de reforma de transparência e combate à corrupção que urge ser aprovado no Parlamento, até porque há muitas matérias que se afiguram consensuais atendendo aos programas eleitorais dos vários partidos nas últimas eleições legislativas. A criminalização do enriquecimento ilícito – aplicável ao setor público e privado – ou uma figura similar seria também essencial para combater a corrupção, reduzir suspeições e atrair os melhores para os cargos públicos.
- Reduzir a dois o número máximo de mandatos sucessivos em cargos políticos (locais, regionais, deputados da Assembleia da República e cargos ministeriais): a ideia seria equiparar com o que acontece com o Presidente da República (ainda que a duração do seu mandato seja um pouco superior: 5 anos face a 4 anos nos restantes casos), que não pode ser eleito para um 3º mandato, só podendo voltar a candidatar-se a esse cargo após 5 anos, além de que tende a não concorrer a outros cargos políticos após essa posição, até porque poderia ser considerado desprestigiante. Atualmente, não há limites de mandatos dos deputados nem em cargos ministeriais, enquanto os mandatos autárquicos estão sujeitos a um limite de 3 consecutivos, não podendo candidatar-se ao mesmo cargo na eleição seguinte, mas podendo concorrer a outro cargo ou a um órgão diferente. Para travar o ‘carreirismo’ político, entendo que deveria haver um ‘período de nojo’ mínimo de 5 anos após dois mandatos políticos seguidos, no mesmo ou noutro cargo, para obrigar a um contacto com a realidade do país nas funções posteriores, seja no setor privado, no Terceiro Setor ou até na Administração Pública. Tal obrigaria os partidos políticos a uma renovação muito mais frequente de quadros e uma maior abertura à sociedade civil. O exemplo da Suécia, embora positivo, decorre de uma cultura de participação cívica já muito enraizada, mas em Portugal seria difícil estabelecer uma tal cultura sem medidas mais drásticas como esta, a meu ver.
- Reduzir significativamente o nível administrativo das freguesias, reajustar o número de concelhos e avaliar de forma rigorosa a eventual criação de regiões administrativas que façam sentido no contexto do território continental: além de gerar uma maior eficiência da despesa pública, seria também um passo no sentido de haver menos cargos políticos a ‘redistribuir’. A recente confirmação no Parlamento do desdobramento de freguesias, que o Presidente da República deverá promulgar, é um erro e um afastamento desta reforma territorial que entendo como crucial para o desenvolvimento do país.
Notas finais e implicações para a situação política atual
Neste artigo evidenciei características do sistema de democracia participativa da Suécia que inspiram propostas adaptadas ao contexto nacional, tendo em vista a substituição da cultura de carreirismo político vigente por uma cultura de serviço cívico, mérito e transparência no nosso sistema político, que desejavelmente deveria começar dentro dos partidos, implicando uma maior rotatividade de lideranças – sistemática, não apenas decorrente de perdas eleitorais – e maior abertura à sociedade civil.
A transparência não é apenas uma característica desejável na política, mas uma condição necessária para a confiança dos eleitores. Quando os cidadãos percecionam que os seus representantes atuam no interesse público e não em benefício próprio ou de redes partidárias, a legitimidade do sistema democrático sai reforçada. Pelo contrário, quando a política se torna um espaço de favores e carreirismo, os eleitores afastam-se e tornam-se mais vulneráveis a discursos populistas que exploram o descrédito das instituições. Portugal tem, pois, sofrido com esta realidade, onde a perceção de corrupção mina a credibilidade do sistema político e dificulta a atração de quadros qualificados para a governação.
Realço que a rotação de lideranças políticas, com regresso às profissões de origem, permite a criação de ‘reservas políticas estratégicas’, os chamados ‘senadores’, que poderão mais tarde regressar a cargos políticos com ânimo renovado, mais experiência e talvez até melhores condições do que antes. Uma cultura política de serviço cívico implica que as lideranças devem dar o exemplo e saber quando sair, cedendo o lugar a quem tenha mais condições para exercer o cargo. Implica ainda saber interpretar quando o regresso a cargos de topo pode servir bem o país, após avaliação do contexto e vontades.
Entendo que chegamos a um desses momentos, cabendo aos protagonistas a leitura do que melhor serve o país. Infelizmente, são muito raros os casos de desprendimento de lideranças políticas em Portugal, em particular quem tenha prestado serviços de grande valia para o país e demonstrado a integridade de se afastar e dar lugar a outro com melhores condições face ao contexto, afastando-se da esfera partidária, e recusando cargos de influência e privilégios vitalícios. Só conheço um caso na história recente e que constitui uma reserva política estratégica de enorme valor, pelos serviços que ainda pode prestar ao país. Precisamos de reformas profundas para que esse exemplo de serviço cívico seja a regra e não a exceção.
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